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Passeio científico:
"Pedalar com Histórias! Mobilizar Lisboa" 20.11.2023

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Crédito da fotografia: Mário Rui André | Lisboa Para Pessoas

Cada vez há mais pessoas a pedalar em Lisboa (http://ushift.tecnico.ulisboa.pt/utilizacao-da-bicicleta-cresceu-25-em-2020-e-ha-mais-mulheres-a-pedalar-em-lisboa/). Conhecida pelas suas colinas, têm vindo a mostrar que há necessidades concretas de uma cidade mais ciclável. Factores como o aumento da extensão das ciclovias, o sistema de bicicletas partilhadas e uso de eléctricas, ou iniciativas variadas propondo novas práticas e visões sobre a cidade têm sido apontados para esta, aparentemente, nova realidade. Mas será que a bicicleta passou a construir cenas quotidianas, em Lisboa, apenas a partir do ano de 2001 em diante, quando se começaram a construir ciclovias na cidade?


Como resposta, propusemos um passeio científico no âmbito da Semana da Ciência e Tecnologia 2022 | Ciência Viva 2 que buscou contribuir na construção de uma visão histórica sobre o uso da bicicleta em Lisboa, numa perspectiva activa, ou seja, convidando as pessoas a pedalarem connosco e a serem protagonistas do processo de reflexão sobre o espaço urbano.

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Créditos do banner: Ana Cabral Martins (CIUHCT)

Nesse sentido foram percorridos dois tipos de itinerários: um itinerário físico, essencialmente por ciclovias, fácil de pedalar, entre o Campo Grande e a Baixa; um itinerário imaginário, aprofundado em paragens durante o percurso, em locais onde, através de recursos visuais, fizemos evocações históricas comparando “as Lisboas” dos passados e dos presentes.

 

Para as pessoas que não puderam participar, assim para as quais gostariam de relembrar dos momentos, deixaremos a seguir o intinerário imaginário, a partir de textos de autoria de Maria Luísa Sousa e com contribuições de Patrícia Melo e Diego Cavalcanti.

Primeira estação (1/4): Campo Grande

Apresentador: David Vale
Pergunta: Será que a bicicleta passou a construir cenas quotidianas, em Lisboa, apenas a partir do ano de 2001 em diante, quando se começaram a construir ciclovias na cidade?

Temas: Estatuto, representações, usos e planeamento. 

Existem indícios do uso da bicicleta desde o início do século XX, nomeadamente, a referência a uma festa chamada “batalha de flores”, organizada pela Sociedade Propaganda de Portugal em 1907 (AML), a um concurso de “velocipedia” militar, no ano seguinte, em 1908 (Matos); em 1924, o registo de um contrato de um lugar chamado Champighon que ficava no jardim do Campo Grande para a actividade de aluguer de bicicletas (AML), ou de corridas de bicicletas na mesma data (ANTT).

 

O jardim é remodelado nos anos 1940s, numa intervenção de Francisco Keil do Amaral (e outros), o que terá favorecido o uso da bicicleta através da construção de espaços que previam esse fim.

Nos anos 1960 e 1970 continuam a encontrar-se referências a pistas para bicicletas no jardim do campo grande e a actividade de aluguer de bicicletas e também de motas, precisamente no sítio onde começamos este passeio (Fotografias acima). Portanto, os registos que encontramos parecem associados a um lado de lazer da bicicleta, se bem que não sabemos se quem as alugava tinha apenas esse uso de lazer. De facto, a história da bicicleta em Portugal que conhecemos mostra muito o seu lado desportivo e também de lazer e só recentemente começa a procurar registos da bicicleta como meio de transporte. Mas como os usos e os seus fins co-existem no presente e podem ter co-existido passado. E há registos do uso da bicicleta como meio de transporte em Lisboa, ao longo do século XX (p.ex. grupos profissionais, como os boletineiros ciclistas).

Se, no início do século XX, em 1907, o andar de bicicleta ainda poderia estar associado à aristocracia e às pessoas que exerciam profissões liberais (FOTO) (como os membros da Sociedade Propaganda de Portugal, uma espécie de “Touring Club” de Portugal, criada em 1906), em 1961 talvez pudesse mais facilmente ser associada à imagem de “cavalo dos pobres” ao ser usada por pessoas que trabalhavam nas construções de obras públicas.

 

Não deixa de ser irónico que, como mostra a fotografia de 1961, algumas das pessoas que trabalhavam nas obras da segunda circular no Campo Grande (FOTO) se deslocassem para o trabalho, ajudando a construir uma via da qual efectivamente as bicicletas viriam a ser excluídas. Portanto, estas fotografias remetem-nos para o estatuto e representações em torno do andar de bicicleta, mas também para a forma como a automobilidade (a mobilidade do automóvel particular) passou a dominar o espaço público. E seguimos viagem para a próxima estação!

Segunda estação (2/4): Entrecampos
Apresentadora: Patrícia Melo
Pergunta: Quais as mudanças percebidas ao compararmos duas fotografias de momentos diferentes do viaduto de Entrecampos?

Temas: modos alternativos de mobilidade e planeamento.

Nesta segunda paragem evocamos o cruzamento de vários modos de mobilidade que se encontram representados neste viaduto ferroviário de Entrecampos e nas estações e infraestruturas envolventes. Com o planeamento das chamadas “avenidas novas” no final do séc. XIX, surgiu este cruzamento entre a então Av. Ressano Garcia (actual Av. da República) e a linha ferroviária de cintura interna, resolvido com passagens de nível, aterros e pequenos túneis. O primeiro viaduto que vemos (FOTO) foi inaugurado em 1950. Será substituído por um novo viaduto, projectado pelo Eng. Edgar Cardoso em 1968 e inagurado no início dos anos 1970s. A construção deste novo viaduto é coeva com a construção do túnel rodoviário de Entrecampos e responde a um racional comum: o aumento do tráfego automóvel e do espaço público usado para o seu funcionamento.

Nesta estação evocou-se também as questões ligadas ao planeamento urbano e da mobilidade: o chamado plano De Groër, de 1948, previa já a construção de vias radiais e circulares para Lisboa, dando um papel importante ao que se imaginava que seria a circulação automóvel. Se em parte, o argumento era evitar o tráfego de atravessamento, estas radiais, pelo contrário, traziam o tráfego automóvel directamente para o centro da cidade. O plano aprovado no final dos anos 1960s para Lisboa acentuava esta questão, tendo havido vários estudos que lhe deram seguimento, que previam um aumento da circulação e da criação de infraestruturas (como túneis rodoviários no centro histórico) para a acomodar (o que é um paradoxo irresolúvel, como sabemos). Algumas destas propostas não tiveram seguimento

Terceira estação (3/4): Alameda, Av. Almirante Reis

Apresentadora: M. Luísa Sousa
Pergunta: O que é uma avenida?

Temas:  movimentos sociais e conceitos de tráfego.

As duas primeiras definições da infopedia (Porto Editora) são: “1. via mais larga do que uma rua e cuja faixa de rodagem tem geralmente diversas pistas para a circulação automóvel; 2. rua larga e geralmente orlada de árvores; alameda”. Percebemos como até os dicionários cristalizam definições que merecem alguma reflexão.

 

O tentarmos perceber como os usos e representações do espaço público (p. ex., uma avenida) são negociados e são processos históricos pode ajudar-nos nesta reflexão.

As primeiras duas imagens são 1) do projecto da chamada Av. dos Anjos e ruas adjacentes; 2) a zona do Desterro e a avenida bloqueada por pre-existências.

A Av. Almirante Reis, nome adoptado com a implantação da República (1910; assim como a Av. da República), foi inicialmente projectada da R. da Palma à Praça do Chile e designada por Av. dos Anjos (na sua inauguração, em 1903, seria ainda chamada Av. D. Amélia). Pensada no final dos anos 1870s para resolver problemas de circulação, demorou vários anos a ser concretizada. O que vemos na fotografia são anexos do hospital do Desterro que demoraram a ser expropriados e que bloquearam a abertura da avenida, sendo que as linhas dos eléctricos existentes faziam o desvio para o largo do Intendente (FOTO). A Avenida era para quem?

Esta avenida continuou a ser reinventada ao longo do século XX, nomeadamente com o seu prolongamento da Praça do Chile ao Areeiro, com a abertura de ruas adjacentes e regularização de arruamentos existentes e também com alterações dos seus perfis transversais, que materializavam a forma como o espaço público era distribuído.

 

Foram por vezes aplicados conceitos da engenharia de tráfego [também pela influência da Junta Autónoma de Estradas e dos seus engenheiros rodoviários, como se vê nos trabalhos de preparação entre 1954 e 1959 para um novo plano de urbanização de Lisboa (AML)], que acentuavam a hierarquização dos modos de mobilidade mais velozes em detrimento de outros modos de mobilidade (mesmo pelos critérios e instrumentos de planeamento que usavam). No entanto, como vemos nestas fotografias de 1960, modos de mobilidade que eram invisibilizados muitas vezes por essas “expertises”, como a mobilidade pedonal e ciclável, persistiam.

 

Esse discurso de um certo tipo de “expertise” em favor da hierarquização das mobilidades mais velozes continua a ser mobilizado em alguns argumentos apresentados hoje sobre a divisão do espaço público. Há vários actores nestas negociações. Sabemos que os movimentos sociais tiveram um papel importante em algumas cidades europeias para propor alternativas a esta hierarquização das mobilidades. Também observamos movimentos semelhantes a acontecerem em Lisboa.

Quarta estação (4/4): Baixa, R. Crucifixo, 112

Apresentador: Diego Cavalcanti

Pergunta: A bicicleta é uma máquina para sonhar?
Temas: Representações, conceitos históricos, essencialização x historicização. 

Esta foi a última estação do passeio, na qual perguntamos se a bicicleta é uma máquina para sonhar.

Trazemos esta fotografia de um desfile da Mocidade Portuguesa (fotografia anterior a 1947) para nos ajudar a reflectir sobre a normatividade que atribuímos à bicicleta. A Mocidade Portuguesa foi criada em 1936 pela ditadura do Estado Novo português, pretendendo socializar os jovens (e também as jovens, na Mocidade Portuguesa Feminina, criada pouco depois) nos valores do regime (sendo inicialmente inspirada nas Juventudes Hitleriana e Italiana Fascista). Nesta fotografia, desfilam com bicicletas. Que representam as bicicletas? Como não as essencializar? 

Essa reflexão serve para pensar sobre como a bicicleta também é um dos moventes que disputam o espaço urbano e também tem suas exclusões. Como diria o historiador da tecnologia Melvin Kranzberg: “a tecnologia não é boa, não é má e também não é neutra”, ou seja, depende de como é usada e do contexto desse uso.

Voltando à nossa pergunta, se a bicicleta é uma máquina para sonhar, e estando com atenção aos riscos da normatividade (e da essencialização), podemos dizer que a bicicleta já permitiu sonhar, já foi objecto de desejo (como bem de consumo e não só).

Fazer pensar sobre os  contextos de classe e a construção do estatuto sobre a bicicleta, do século XIX como algo aristocrático, ao longo do século XX como objeto de trabalho e também de desporto, até os dias atuais.

Na segunda fotografia do álbum acima vemos uma casa de venda de bicicletas, a casa Victoria, de Armando Crespo e C.ª, que funcionou nesta rua em que estamos (R. do Crucifixo) desde o final dos anos 1930s até, pelo menos, aos anos 1960s (verificar AML – pedido feito).

O estudo das lojas de venda, de aluguer e oficinas de bicicletas desde o início do século XX são mais um dos indícios do uso das bicicletas nos quotidianos de Lisboa (como vemos neste mapa preparado pelo nosso colega João Machado). A investigação está em aberto, bem como a resposta sobre como o conhecimento do passado poderá dar ferramentas para pensarmos o presente e o futuro. 

Na fotografia, estavam expostas as bicicletas que foram oferecidas por esta loja para o “Concurso dos Sonhos”.

E por fim, deixamos a pergunta a bicicleta continua a fazer sonhar hoje em dia?

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